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O que é o alcoolismo

Neste artigo, apresentaremos uma parte da pesquisa - as representações sociais elaboradas pelos nossos entrevistados sobre o alcoolismo e sobre as causas que os levaram à dependência.

 

O alcoolismo é uma doença

A análise das representações sociais sobre o alcoolismo, elaboradas pelos seis alcoolistas em tratamento na Fazenda do Sol e por seus familiares, conduz-nos às seguintes considerações: em primeiro lugar, o alcoolismo foi representado como doença, porém essa representação, como poderemos observar a seguir, vem associada à tristeza/solidão, a algo incurável, grave ou, ainda, a uma doença que, estando o indivíduo com ela, necessita de ajuda para recuperar-se.

A representação do alcoolismo como doença assemelha-se à interpretação elaborada pelo modelo biomédico, que circunscreve a doença alcoólica no âmbito biológico e fisiológico. Nesse sentido, Campos (2005), em seu estudo acerca das representações de ex-bebedores sobre o contágio e a doença, defende que a maioria concebe o alcoolismo como uma "doença inata", enraizada no organismo do alcoólico, que constrange a vontade do indivíduo, impedindo-o de agir de modo responsável.

 

Assim, a representação do alcoolismo como doença nos remete aos universos reificados do saber.Moscovici (1981) apud Sá (1993) considerava, nas sociedades contemporâneas, a coexistência de duas classes distintas de universos de pensamento: os universos reificados e os universos consensuais. Nos universos reificados, circulam as ciências e o pensamento erudito em geral; nos universos consensuais, as atividades intelectuais da interação social cotidiana, ou teorias do senso comum, por meio das quais são produzidas as representações sociais. Nesse contexto, uma realidade social é criada apenas quando o novo ou o não familiar, que geralmente se encontra nos universos reificados, passa a ser incorporado aos universos consensuais, representando, assim, o não usual em nosso mundo usual. A fim de compreender esse fenômeno, o referido autor estabeleceu o princípio da "transformação do não familiar em familiar", justificando a formação das representações sociais. Para ele, a tensão gerada pelo não familiar impede que a habituação mental domine completamente, pois o estranho intriga e perturba as pessoas, por isso é necessário transformar o estranho em familiar.

 

Não podemos, pois, deixar de sublinhar que,embora o discurso médico (universo reificado)influencie na representação do alcoolismo como doença, essas informações são ressignificadas pelos sujeitos a partir do contexto econômico e sociocultural no qual estão inseridos, porquanto,como afirma Arruda (2002, p.134), "O sujeito do conhecimento é um sujeito ativo e criativo, e não, uma tábula rasa que recebe passivamente o que o mundo lhe oferece, como se a divisória entre ele e a realidade fosse um corte bem traçado."

 

Como dito anteriormente, o alcoolismo é representado como uma doença que traz tristeza/solidão, como mostra a fala seguinte:

Pra mim, o alcoolismo em si é uma doença. Mas beber pra mim antes era um refúgio, era um desabafo, era uma... fugir da tristeza, né? Fugir da solidão. Era isso que eu pensava antes de adoecer. Agora o alcoolismo é totalmente o inverso do que eu pensava, é onde tá a solidão, de onde vem a tristeza, onde vem a falta de confiança, onde vem tudo aquilo que a pessoa não quer ser, não quer passar na vida. No princípio você diz que vai tomar uma pra alegrar, tomar uma pra passar o frio, tudo é em vão. A bebida não é nada mais do que a morte. (VAL, alcoo)

 

Observa-se que esse entrevistado, remetendo-se à sua experiência pessoal, ao mesmo tempo em que representa o alcoolismo como doença, deixa explícito que sua visão mudou após "adoecer". Antes, beber, para ele, era uma fuga de situações que traziam tristeza. Hoje, é completamente o oposto, o alcoolismo o faz se deparar com sentimentos de solidão, tristeza e desvalorização de si próprio - "a bebida é a morte". Convém destacar que nenhum familiar associou o alcoolismo à tristeza/solidão.

 

Podemos constatar também, por intermédio das entrevistas, que o alcoolismo é representado como uma doença incurável, como assinala o discurso:

O alcoolismo é uma doença, é uma doença que ela é incurável, mas ela tem um tratamento, e você querendo, você morre sóbrio sem ingerir nenhuma gota de álcool, aí só depende de si mesmo. Você tem a ajuda, porque os Alcoólicos Anônimos mostra o caminho certo a gente, a gente segue se quiser. A gente nunca é obrigado a fazer aquilo que não quer, mas lá ele ensina a gente, digamos assim, a obrigar a fazer a coisa certa [...] eu me conscientizei que eu sou doente alcoólatra, eu não posso ingerir a primeira dose porque tudo começa pela primeira. (SEB, irmão)

Verificamos que, embora veja o alcoolismo como uma doença incurável, esse familiar também consegue encontrar para ela uma possível solução, que seria evitar o primeiro gole de álcool, o que denota uma referência ao discurso dos AAs. Durante as entrevistas, ficamos sabendo que o entrevistado, SEB, participou desse grupo e hoje se considera um ex-dependente do álcool. Cumpre assinalar que alguns internos também já participaram desse grupo.

O alcoolismo é representado, ainda, como uma doença grave: "Pra mim, eu digo hoje, com toda a afirmação, o alcoolismo é uma doença, uma doença e grave, né? Que chega até a matar, se a pessoa não procurar ajuda em tempo, né? É... o meu jeito que eu sei do alcoolismo é esse" (RUB, alcoo).

 

Podemos observar que RUB representa o alcoolismo como uma doença grave, que leva à morte se a pessoa não procurar ajuda. Da mesma forma, uma familiar, quando questionada sobre o que é um alcoolista, também representa o alcoolismo como uma doença que, uma vez estando o indivíduo com ela, precisa de muita ajuda para recuperar-se:

 

O alcoólatra é uma pessoa doente, né? Que precisa de muita ajuda. No meu ponto de vista, uma pessoa que tá dependente assim de qualquer vício, né só o álcool não, é uma pessoa que tá precisando de ajuda, é uma pessoa doente, é uma doença, com certeza, pra mim é mais do que uma doença uma pessoa que tem qualquer tipo de vício [...]. (JOA, irmã)

 

Dados semelhantes foram encontrados em estudo realizado por Campos (2004) acerca das representações sobre o alcoolismo dos integrantes do grupo AAs, situado num bairro da periferia de São Paulo. O referido autor afirma que alguns entrevistados representam o alcoolismo como uma doença, sendo necessário àquele que está acometido por ela procurar ajuda. Os membros dos AAs reconhecem-se como "doentes alcoólicos em recuperação", em oposição à imagem de "bêbado e cachaceiro" dos tempos do alcoolismo ativo, adquirindo assim um status de doente, com uma positividade não encontrada na condição do "bêbado" e do "cachaceiro".

 

Para o referido autor, os AAs defendem uma teoria segundo a qual o indivíduo não é responsável pela aquisição do alcoolismo, visto que esse mal é considerado inato, inerente ao organismo do alcoólico, e pelo qual ele não pode ser responsabilizado.

Em um estudo posterior, Campos (2005) assinala que os AAs redefinem os termos de responsabilidade do doente alcoólico, pois, se o indivíduo não é responsável pela aquisição dessa doença, ele o é por sua recuperação.

 

Dessa forma, o discurso dosAAs possibilita ao alcoolista a reconstrução de sua identidade, e o álcool passa a ser entendido como elemento impuro, que deve ser evitado devido a sua relação direta com a doença alcoólica. A recuperação consiste, então, em evitar tudo o que está relacionado a essa droga. Assim, é essa representação do álcool e do alcoolismo que orienta as ações em direção à sua recuperação.